Chamada para envio de artigos para o Dossiê ''Antropocentrismo e História''

2024-07-21

As humanidades carregam antropocentrismo em seu próprio nome. Com a história não é diferente. Desde que foi institucionalizada e definida pela tradição como a “ciência dos homens [sic] no tempo” (Marc Bloch), sua referência tem sido a história da humanidade. O antropocentrismo da disciplina – a saber, a noção de uma essência humana estável e universal que pode servir como medida de todas as coisas – foi questionado por várias correntes de pensamento nas últimas décadas, por meio das críticas pós-estruturalistas, pós-coloniais, feministas e da teoria de gênero, bem como por estudos pós-humanistas. Este dossiê, em diálogo com os desafios de nosso tempo – como as mudanças climáticas, as pandemias, a migração, os prospectos de extinção tecnológica e em massa, guerras e violência –, propõe reunir trabalhos acadêmicos que questionem os limites da visão antropocêntrica da história e explorem as possibilidades de estudos históricos não antropocêntricos (ou, pelo menos, menos antropocêntricos).

Essa não é uma tarefa fácil. O que está em jogo não é apenas o antropocentrismo – entendido como um avatar extremista do humanismo – mas também a historicidade, a crença no fluxo da história e na passagem do tempo como aspectos inerentes e universais da vida e da morte, bem como da evolução e da extinção. Também reconhecemos que a promoção ou não do não antropocentrismo – e a questão do excepcionalismo humano em geral – envolve uma ampla discussão sobre responsabilidade e ética na história (Domańska, 2024).

Juntamente com Donna Haraway (1988) e muitos outros autores, estamos convencidos de que as noções fundamentais de excepcionalismo humano e historicidade excluíram e marginalizaram formas alternativas de ser e conhecer. Em vez de uma posição neutra ou imparcial, elas devem ser vistas dentro de contextos sociais, culturais e históricos específicos. É uma tarefa geracional revisitar essas noções, reconhecendo as diversas perspectivas, mundos e formas de conhecimento, na busca de novos conceitos capazes de lidar com os desafios de uma nova condição histórica. Essa tarefa também envolve debater significados possíveis (ou futuro-orientados) para experiências emergentes – algumas radicalmente novas, outras decorrentes de passados sombrios – tendo como pano de fundo transformações aceleradas e profundas induzidas pela atividade humana em um domínio ambiental e tecnológico entrelaçado, repleto de agências enriquecidas, não humanas e humanas, abrangendo paisagens epocais e antropocênicas (Simon, 2020).

Portanto, questionar os fundamentos da história como disciplina envolve não apenas uma tarefa de desconstrução, mas sobretudo a elaboração de “conceitos de ponte” e abordagens relacionais para a coexistência e colaboração entre conhecimentos ocidentais e não ocidentais, humanos e não humanos, englobando as humanidades e as ciências naturais (Marino, 2022; Domańska, 2020), ou assumindo a forma de “conceitos conectivos” (Simon 2020) por meio de debates públicos mundiais, como o debate sobre o Antropoceno ou sobre os perigos da inteligência artificial, referindo-se a uma realidade mais que humana, ambiental e tecnológica (Bonaldo, 2023; Tamm & Simon, 2020).

Convidamos uma gama diversificada de contribuições que escrutinem o funcionamento das narrativas históricas tradicionais centradas no ser humano e se aventurem a explorar alternativas holísticas e relacionais para a história. Por um lado, buscamos trabalhos que explorem as limitações da construção de uma humanidade amplamente eurocêntrica, reconhecendo as influências do colonialismo e do capitalismo global, bem como as interseções com a tecnologia, a natureza e os sistemas de conhecimento não eurocêntricos. Por outro lado, esperamos receber contribuições que se dediquem a examinar a condição histórica contemporânea, o papel ativo de entidades não humanas na formação da história e as influências mútuas entre humanos, não humanos e o meio ambiente. São particularmente bem-vindas abordagens que integrem perspectivas da história ambiental, história animal, big history, história profunda, implicações do Antropoceno para a história humana e perspectivas trans e interdisciplinares, como ecologia, etologia e estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS). Por fim, também incentivamos o envio de trabalhos que empreguem metodologias inovadoras para mapear a agência não humana e reflitam sobre as implicações éticas do antropocentrismo.

O objetivo último deste dossiê é compilar uma coletânea que promova uma historiografia mais emaranhada e multiespecista, reconhecendo a coexistência de todas as formas de vida e entidades na construção do conhecimento histórico. Para tal, busca-se fomentar contribuições que ampliem o escopo da historiografia tradicional para incluir interações mais que humanas e considerações éticas a fim de promover uma compreensão abrangente de nossas temporalidades entrelaçadas.